segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O gatinho da minha rua e seu Maha Savasana

O oriente penetrou em mim quando eu ainda era muito jovem; parecia que tudo o que vinha de lá produzia um efeito quase magnético sobre minha atenção e sobre o meu coração.

Sempre encontrei pessoas, livros e músicas que, constantemente, me faziam o convite a olhar para o oriente. E os convites eram tão diversos, quanto a diversidade que existe por lá. Mas, foi quando passei a habitar terras paulistanas que fui convidada a experimentar o Yoga. O nosso primeiro encontro tinha pitadas de vigor e juventude, era o corpo que encenava o papel principal da história.

Aos poucos me interessei pela multiplicidade e abrangência - quase infinita - dessa palavrinha de quatro letras e descobri, que o corpo encena na filosofia do Yoga, talvez, o mais insignificante dos papéis.

'É preciso perceber, sentir e permanecer em posturas de Yoga onde a cabeça e o coração estejam no mesmo nível" dizia e repetia (como um Mantra) a Raquel durante um curso que fiz, de Yoga Restaurativo. Trocando em miúdos e sendo bem gerenalista, é um linha que tem como premissa posturas passivas, de conforto extremo e que proporcionem ao aluno renovação e regeneração em níveis profundos de relaxamento.

Ufa! Tudo que eu precisava neste final de ano.

A principal postura do Yoga restaurativo é o Savasana (Sav - Cadáver / Asana - Sentar).  O workshop durou uma noite e dois dias e o convite era, exatamente o que você deve estar pensando agora, experimentar a restauração profunda que a postura do cadáver {Savasana} causa no corpo, na mente e no coração. Foi intenso. Pronfundo. Íntimo.

Finalizei o curso determinada a fazer Savasana todos os dias.

(fim do primeiro ato)

Há pouco mais de seis meses dois gatos se apaixonaram. Ela, cinza com olhos de um verde quase amarelo. Ele, cor de caramelo, jeito despojado e olhos marotos.

Do amor deles sugiram 3 gatinhos. Não sabemos - ainda - quantos são machos ou fêmeas mas, a Clara, acabou batizando de: Clara um, Clara dois e Clara caçula.

Um era pretinho de olhos verdes quase amarelos como a sua mãe. Os outros dois eram branquinhos e tinham as extremidades cinza, com sua mãe e os olhos azuis como o céu e marotos como os do seu pai.

Eles nasceram poucos metros distantes da porta da nossa casa e, alegram todas as nossas manhãs, quando veem o carro saindo da rua e se escondem nos dois grandes canos da casa do vizinho, o que leva as meninas a gragalhadas imensas e mãos apertando as bochechas em gesto de fofura extrema.

Qualquer hora do dia que saíssemos de casa encontrávamos aqueles 3 gatinhos saltitantes e sapecas rolando na relva fresca e úmida da nossa rua de paralelepípedos. Por quase dois meses acompanhamos o crescimento deles e as eternas brincadeiras de escode-esconde que eles operavam todas as vezes que saíamos de casa.

O que era graça para as meninas, para nós adultos cheios de medos, era motivo de preocupação. Será que ninguém vai adotar esses gatinhos? Depois descobrimos que isso nunca seria possível por que eles são filhos dos gatos de um dos nossos vizinhos da rua de cima. Será que não dá para ele colocar esses gatinhos dentro de casa? Algum dia ainda vai acontecer uma tragédia!

(fim do segundo ato)

Segunda-feira, dia seguinte aos dois dias e uma noite que me regenerei no curso de Yogo restaurativo, que havia me proporcionado uma das melhores noites de sono dos últimos tempos, acordo feliz e saltitante.

7:15 da manhã. Saio para levar a Clara na escola, vejo um gatinho - curiosamente sem sua mãe ou seus irmãos como de costume - deitado na rua, dormindo serenamente, restaurativamente, com sua cabeça entre as patinhas, na mais gostosa e confortável das posições.

Não sei por que mas, desta vez não chamo a atenção da Cla para vê-lo, senti um frio quando o vi de longe ... passo com o carro perto dele e ele não se mexe. Meu corpo gela, fico triste.

Ligo para o meu marido e pergunto se ele o tinha visto. Ele diz que sim e setencia: deve ter morrido de frio. Apesar de já ser primavera, estamos enfrentando tempos frios na terra da garoa.

Deixo a Clara na escola e volto, preciso cuidar disso antes que as meninas voltem da escola. Era a única coisa que pensava. Entro em casa e pego dois sacos plásticos pequenos, um grande, e um saco de algodão bem macio...subo a ladeira de paralelepípedos da minha rua ainda com a vegetação toda coberta com pequenas gotas de chuva e um cheiro maravilhoso de terra molhada.

Agacho na frente do gatinho, seus olhos azuis ainda estavam um pouco entre abertos. Parecia relaxado, feliz. Um verdadeiro Maha Savasana.

Tenho um Déjà vu. Quando a minha mãe se foi não tive coragem de vê-la morta, não quis tocar o seu corpo inerte, não tive coragem.

Agora estávamos lá, eu e o gatinho - nem imagino qual das "Claras" ele possa ser, não quero pensar nisso - somos só nós dois e, ninguém mais pode fazer isso por mim. Coloco os dois sacos pequenos nas minhas mãos, aliso delicadamente sua pequena cabeça, é verdade, ele se foi.

Coloco as minhas mãos em prece, faço uma oração. Peço licença para pegar neste corpinho que um dia uma alma de gato habitou. Pego aquele corpo pequenino, frio e pesado e coloco delicadamente dentro do saco de algodão macio, depois no saco plástico e me despeço.

Na rua não passa uma viva-alma sequer, só tem vento, canto de pássaro e cheiro de terra molhada. Sinto amor, compaixão, por mim e por ele.

Meu coração está acelerado...entro na minha casa, agarro a Mavis - a nossa gata - dou um monte de beijos nela e agradeço, por tudo.

"Não existem vidas comuns, apenas olhares domesticados" Eliane Brum

(Fim)

*Não consegui achar o autor dessa foto maravilhosa se um gatinho dormindo no colo de um Budha. Foto captada Printerest, se você souber me avisa que coloco os créditos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sobre a Morte, o Natal e a Gratidão


Hoje é o dia que se inicia o calendário do Advento, faltam 24 dias para o Natal. Desde 2014 os Natais para mim são diferentes, as emoções felicidade, tristeza, alegria e gratidão dançam abraçadas dentro do meu corpo.

Resolvi fazer deste primeiro dia de Advento um dia de gratidão às forças supremas do Universo. Este texto é a materialização disso. Ele nasceu durante o lindo curso Como se encontrar na escrita, da Ana Holanda, pela The School of Life.

Ana, você e grupo deste curso morarão no meu coração, para sempre! Obrigada!

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Era julho de 2013, um domingo frio em São Paulo e eu e Rudolf, meu companheiro nos últimos 12 anos, resolvemos deixar nossas filhas Gabriela e Ana Clara, na época com três e um ano sob os cuidados da avó paterna para irmos a um sermão da The School of Life sobre o arrependimento e a morte.

Naquele domingo choramos e agradeçemos. Saímos de lá, duas horas depois, em completo silêncio, pelos quase 12 kilômetros que separam a Rua Augusta da nossa casa. Para mim, era a primeira vez que o assunto morte era ouvido e sentido numa situação onde ela, a morte, não estava dolorosamente presente, de corpo e alma. Mal sabia que iria visitar e relembrar essas duas horas, em breve.

Alguns meses se passaram e, tratei de começar, antes do fim, a colocar uma das minhas resoluções de fim de ano em andamento e, mais uma vez, vi-me numa situação e num lugar onde o convite a pensar sobre a morte era feito. 23, 26 e 27 de dezembro, Monja Coen, o Budismo em três lições. Terceiro ato: sobre o nada e o vazio, os movimentos da vida. Só conseguia sentir, as palavras me faltavam e o silêncio me dominou novamente.

24 de Dezembro de 2014. São Paulo acordou com o típico dia brilhante de verão. Quente, o sol deixava as árvores e as flores ainda mais bonitas e coloridas. Eu amo Natal, sempre amei e este seria especial: o primeiro na nossa casa! As meninas estavam elétricas, eu e Rudolf não víamos a hora da noite chegar, os preparativos estavam a mil e a felicidade reinava, absoluta.

Estou sentada no chão da cozinha terminando os últimos arranjos de flores, dali a pouco, em alguns minutos, a família aqui de São Paulo começaria a chegar. O telefone toca, era minha irmã de Salvador, atendo com a mais eufórica das vozes. Ela, séria, taciturna: a mamãe passou mal, estamos no hospital. Meu corpo gela, tenho a sensação de que ele pressente algo. Ela conta os detalhes do que aconteceu, diz que a mamãe esta sendo atendida e que ligaria quando tivesse alguma novidade.
Desligo o telefone e sinto como se o tempo tivesse congelado e percebo que os meus olhos já não veem as árvores e as flores com o colorido de antes. Atravesso o corredor da minha casa e aviso a Rudolf. Ele tenta me acalmar mas parece que a minha alma já sabia o que estava por vir.

Subo para o meu quarto e, diante do meu altar, eu rezo. Peço pela minha mãe e por mim. Meu coração acelera e depois dos longos minutos que passei em oração, resolvo tomar um banho para acalmar a mente. Em seguida o telefone toca. Olho no visor, é a minha irmã. Por alguns minutos eu penso que não quero atender aquela ligação, ela tinha um cheiro diferente.

“Os médicos disseram que ela não resistiu”.

Meu corpo gela. Não sinto o chão sob os meus pés. Choro. Não acredito e pergunto se aquilo realmente estava acontecendo, se era verdade ... Para todas as perguntas de negação, encontrava o sim como resposta.

Algumas horas mais tarde já estava no avião a caminho de Salvador. O silêncio me dominava, sentia-me anestesiada por dentro. E assim passei por todos os rituais de despedida. Como filha mais velha recebi a nomeação – digo nomeação porque não pedi nem me voluntariei – de dizer algumas palavras no momento final de despedida. Sentia calafrios, meu coração estar sendo esmagado. O barulho dentro de mim era imenso. Mas da pele para fora, as pessoas só me viam entre lágrimas e soluços recitar o Soneto de fidelidade, de Vinícius de Moraes, a única coisa que consegui dizer naquele momento, não conseguia falar de mim e do que eu sentia com as minhas própias palavras.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Entre os abraços e beijos que recebi no final, ouvi de alguém: “Agora é vida que segue”. E ela, de fato, segue. O meu corpo acordava da anestesia a cada dia que passava. Aos poucos já conseguia falar com os amigos sobre o que sentia e foi numa dessas conversas, daquelas em que eu parecia o narrador de uma peça enquanto falava, que me dei conta do último ano e como, de certa forma, aquelas escolhas que eu fiz de ouvir sobre a morte foram uma homeopatia em doses antecipadas.
Olhei pela janela do restaurante que almoçávamos, ainda era verão. O Sol, brilhante e quente, deixava as árvores e as flores ainda mais coloridas. Conseguia enxergar de novo, o meu corpo estava descongelando.
2016.

Uma pausa. Olho pela janela, cinza. Hoje é, de novo, um domingo frio e chuvoso em São Paulo. Música clássica toca na cozinha, enquanto as panelas fazem barulho. As crianças brincam na sala e eu aqui, mais uma vez, revisitanto a morte. Penso nessa lógica tão própria e maluca do universo e de como sua matemática parece perfeita em alguns momentos, daquele jeito desconcertantemente óbvio, quando eu olho para trás.

Lá fora, frio, aqui dentro, quente.