quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sobre a Morte, o Natal e a Gratidão


Hoje é o dia que se inicia o calendário do Advento, faltam 24 dias para o Natal. Desde 2014 os Natais para mim são diferentes, as emoções felicidade, tristeza, alegria e gratidão dançam abraçadas dentro do meu corpo.

Resolvi fazer deste primeiro dia de Advento um dia de gratidão às forças supremas do Universo. Este texto é a materialização disso. Ele nasceu durante o lindo curso Como se encontrar na escrita, da Ana Holanda, pela The School of Life.

Ana, você e grupo deste curso morarão no meu coração, para sempre! Obrigada!

******************************************************************

Era julho de 2013, um domingo frio em São Paulo e eu e Rudolf, meu companheiro nos últimos 12 anos, resolvemos deixar nossas filhas Gabriela e Ana Clara, na época com três e um ano sob os cuidados da avó paterna para irmos a um sermão da The School of Life sobre o arrependimento e a morte.

Naquele domingo choramos e agradeçemos. Saímos de lá, duas horas depois, em completo silêncio, pelos quase 12 kilômetros que separam a Rua Augusta da nossa casa. Para mim, era a primeira vez que o assunto morte era ouvido e sentido numa situação onde ela, a morte, não estava dolorosamente presente, de corpo e alma. Mal sabia que iria visitar e relembrar essas duas horas, em breve.

Alguns meses se passaram e, tratei de começar, antes do fim, a colocar uma das minhas resoluções de fim de ano em andamento e, mais uma vez, vi-me numa situação e num lugar onde o convite a pensar sobre a morte era feito. 23, 26 e 27 de dezembro, Monja Coen, o Budismo em três lições. Terceiro ato: sobre o nada e o vazio, os movimentos da vida. Só conseguia sentir, as palavras me faltavam e o silêncio me dominou novamente.

24 de Dezembro de 2014. São Paulo acordou com o típico dia brilhante de verão. Quente, o sol deixava as árvores e as flores ainda mais bonitas e coloridas. Eu amo Natal, sempre amei e este seria especial: o primeiro na nossa casa! As meninas estavam elétricas, eu e Rudolf não víamos a hora da noite chegar, os preparativos estavam a mil e a felicidade reinava, absoluta.

Estou sentada no chão da cozinha terminando os últimos arranjos de flores, dali a pouco, em alguns minutos, a família aqui de São Paulo começaria a chegar. O telefone toca, era minha irmã de Salvador, atendo com a mais eufórica das vozes. Ela, séria, taciturna: a mamãe passou mal, estamos no hospital. Meu corpo gela, tenho a sensação de que ele pressente algo. Ela conta os detalhes do que aconteceu, diz que a mamãe esta sendo atendida e que ligaria quando tivesse alguma novidade.
Desligo o telefone e sinto como se o tempo tivesse congelado e percebo que os meus olhos já não veem as árvores e as flores com o colorido de antes. Atravesso o corredor da minha casa e aviso a Rudolf. Ele tenta me acalmar mas parece que a minha alma já sabia o que estava por vir.

Subo para o meu quarto e, diante do meu altar, eu rezo. Peço pela minha mãe e por mim. Meu coração acelera e depois dos longos minutos que passei em oração, resolvo tomar um banho para acalmar a mente. Em seguida o telefone toca. Olho no visor, é a minha irmã. Por alguns minutos eu penso que não quero atender aquela ligação, ela tinha um cheiro diferente.

“Os médicos disseram que ela não resistiu”.

Meu corpo gela. Não sinto o chão sob os meus pés. Choro. Não acredito e pergunto se aquilo realmente estava acontecendo, se era verdade ... Para todas as perguntas de negação, encontrava o sim como resposta.

Algumas horas mais tarde já estava no avião a caminho de Salvador. O silêncio me dominava, sentia-me anestesiada por dentro. E assim passei por todos os rituais de despedida. Como filha mais velha recebi a nomeação – digo nomeação porque não pedi nem me voluntariei – de dizer algumas palavras no momento final de despedida. Sentia calafrios, meu coração estar sendo esmagado. O barulho dentro de mim era imenso. Mas da pele para fora, as pessoas só me viam entre lágrimas e soluços recitar o Soneto de fidelidade, de Vinícius de Moraes, a única coisa que consegui dizer naquele momento, não conseguia falar de mim e do que eu sentia com as minhas própias palavras.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Entre os abraços e beijos que recebi no final, ouvi de alguém: “Agora é vida que segue”. E ela, de fato, segue. O meu corpo acordava da anestesia a cada dia que passava. Aos poucos já conseguia falar com os amigos sobre o que sentia e foi numa dessas conversas, daquelas em que eu parecia o narrador de uma peça enquanto falava, que me dei conta do último ano e como, de certa forma, aquelas escolhas que eu fiz de ouvir sobre a morte foram uma homeopatia em doses antecipadas.
Olhei pela janela do restaurante que almoçávamos, ainda era verão. O Sol, brilhante e quente, deixava as árvores e as flores ainda mais coloridas. Conseguia enxergar de novo, o meu corpo estava descongelando.
2016.

Uma pausa. Olho pela janela, cinza. Hoje é, de novo, um domingo frio e chuvoso em São Paulo. Música clássica toca na cozinha, enquanto as panelas fazem barulho. As crianças brincam na sala e eu aqui, mais uma vez, revisitanto a morte. Penso nessa lógica tão própria e maluca do universo e de como sua matemática parece perfeita em alguns momentos, daquele jeito desconcertantemente óbvio, quando eu olho para trás.

Lá fora, frio, aqui dentro, quente.

3 comentários:

Katia Pessanha disse...

Muito bonito, minha amiga, pleno de significados como é a vida.
Ela está sempre certa, a gente é que demora para entender.
Receba, novamente, um abraço carinhoso nesse primeiro dia do Advento.

Patricia Magnani disse...

Ah dona Hellene...tão certeira no sentir e traduzir isso em palavras...senti tua dor e a vivi neste ano de tantas perdas para mim. Mas lendo seu texto, saiu um raio de sol no meu peito. O corpo descongela. Obrigada por me ajudar a me aquecer.

Unknown disse...

Hellen
..."ainda que levem a matéria
ainda que desesperem minha calma
que nada me tire ou me roube a leveza
da minha alma"
Camila Lordelo
Gratidão 🙏🏻